Tuesday, May 31, 2005

Os omnipotentes

O ser humando é de uma estranha natureza. É mutável ao sabor dos seus desejos. O bem e o mal são-lhe inatos, e consoante o que sonha escolhe entre o bem e o mal. Dois pólos que não podem existir um sem o outro. Pessoas há que controlam um. Mas o outro pólo vive sempre próximo, embora não se faça notar. Um dos desejos mais apetecidos é o poder. O Homem adora-o, e pretende conquistá-lo a bem ou a mal. Quem sonha com o poder sobre os outros debate-se numa terrível luta entre o bem e o mal. E um acaba sempre por vencer. O mal normalmente. É o desejo de comandar vidas que o leva a utilizar. E talvez o de anularem Deus. E a sua esperança é que um povo atemorizado não tenha ideias.
Ora, os Deuses políticos nada podem fazer sozinhos. São acompanhados de anjos para seus intentos realizarem. E o poder solidificarem. Esta situação passa-se em Sauzesco, terra onde o amor fraternal é uma miragem e onde os justos derramam o sangue nas colinas solitárias em busca de um novo futuro. Mas ainda não é grave aquilo que se está a passar. Antes será aquilo que se passará. Por enquanto os anjos vagueiam ainda pelas cidades. A morte que lhes está nos corações ainda não foi solta.

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Nas montanhas de Sauzesco passavam-se coisas estranhas à vontade dos omnipotentes. Ana e Danilo - em viagem - sentiam pressentimentos diferentes. Ela queria voltar para junto da filha. Ele não quieria voltar à capital. Ana sentia Miguel longe. Danilo sentia-o próximo. Tinha que continuar. Cumprir com zelo a sua missão. Confiada pelo ditador ainda em San Caetano. Lembrou-se desse encontro, desse momento com o tirano e com o filho. Ao pensar no futuro ditador arrepiou-se. «Coisa abjecta», pensou. E lembrou-se da conversa que manteve com ele dias atrás. À medida que se recordava sentia o ódio crescer-lhe... Estava de novo numa rua poeirenta de San Caetano. O calor era tórrido, e Ana não lhe saia da cabeça depois do reencontro nesse dia,
- O amigo Danilo vai aí embrenhado em pensamentos. Olhe que pensar demasiado queima a cabeça... - Danilo virou a cabeça e viu Afonso del Marco a falar consigo. Um sentimento de náusea o invadiu ao ver o riso estúpido do filho do ditador de Ceauzesco. Danilo manteve o ar grave e respondeu:
- Ia agora ao Palácio presidencial. Julguei que por lá o encontraria, junto de seu pai a tratar assuntos de Estado. Mas reparo, e sem agravo, que prefere passear pelas poeirentas ruas da capital.
- É verdade. Gosto de ver o povo. Sentir o olhar da populaça pousar em mim com veneração. Fazerem-me vénias e tirarem-me o chapéu. Ver as mães a abanarem os filhos pequenos para me saudarem.
- E não é perigoso passear-se assim solitariamente? - perguntou Danilo caminhando ao lado de Afonso.
- Olhe parta o lado, e para trás, já agora para a frente. - Danilo sabia que vários solfdados rondavam Afonso. Eram os seus protectores. A escolta privada do futuro chefe de Sauzesco.
- Bem vejo. Já agora, se vai para sua casa posso acompanhá-lo... Seu pai espera-me como deve saber - disse com um misot de nojo e medo da companhia -
- Claro que sei. Aliás, tenho como missão levá-lo - atirou Afonso com ironia. Meu pai receia que as companhias de uma certa mulher lhe façam mal. Depois pode passar para os revolucionários de quem o marido dela é chefe. Aquele odioso Miguel de Albuquerque... Aí, meu caro, teria a cabeça a prémio.
Danilo emudeceu, raivoso. Se fosse outro homem esboteava-o e desafiava-o em duelo. Mas nada podia fazer, pois mesmo que toda a dignidade do mundo lhe apelasse às vísceras não escaparia de um pelotão de fuzilamento ali mesmo. Mas lembrou-se de dizer cinicamente...
- Ana de Albuquerque é minha amiga de infância. A minha preocupação para com ela vem desde os tempos em que nem sabiamos quem era Miguel. Não se preocupe com ela. O mesmo sentimento teria você, certamente, se rencontrasse um amigo de infância.
Afonso percebeu o dito de Danilo. Durante a infância e juventude fora companheiro inseparável de Miguel de Albuquerque. O relacionamento destes dois era natural, visto que as famílias Del Marco e Albuquerque haviam construído juntas o poder e a influência em Seuzesco. Porém, os dois jovens incompatibilizaram-se um dia. Nenhum percebeu porquê o afastamento. Mantiveram, no entanto, o respeito caduco de uma amizade antiga e sabiam novas um do outro pelos pais. Até ao dia em que Afonso soube, espantando-se de não ficar espantado, que Miguel se passara para o campo inimigo.
Danilo e Afonso tomaram uma caleche e dirigiram-se para o palácio, que ficava próximo. O futuro ditador estava silencioso. A Danilo apetecia dizer para não pensar do mesmo modo que há pouco lhe dissera Afonso. Até que este levantou a cabeça e disse...
- Quando um dia for eu a mandar destruirei todas as provas que me ligam a Miguel de Albuquerque. Quero que a minha infância pela história seja reescrita.

continua - próximo capítulo: a missão confiada a Danilo

Monday, May 23, 2005

Noite

“ Olhem a criança! Ajudem-na! Por favor. Ela não tem que sofrer por nós!
Sim…a criança pode ir…deve ir…peguem nela…os rebeldes que entrem…também são parte de vocês? Não é, nobre aia?
Boa sorte não terás mulher…e o filho que carregaste em ti, como um tesouro, não passará de um cão esmagado pelo meu poder…meu Pai foi muito brando…
Para onde a levam? Não…não façam isso, pelo Governador…”

E enquanto ouvia dentro de si estes gritos, os lamentos de Clarisse, Ana conseguiu erguer a cabeça. Ecoava ainda dentro dela o sarcasmo do Ditador.
Foi nessa altura que Ana viu dois braços pegarem nela e levantarem-na do chão.
- Não lhe toquem… – ouviu Ana dizer. O mestre pede…
- Perdón Señora – continuou a voz – O Mestre disse para a levarmos daqui para fora…venha.
Só nessa altura é que Ana reparou que estava com a roupa cheia de terra.e que estaria ali provavelmente há muitas horas…reparou que tinha um braço magoado.
Levaram-na para fora da barraca. O dia já tinha nascido.
- Onde estamos? – Perguntou Ana?
Nas montanhas Señora. – Respondeu-lhe a voz. – Em Las Corrientes.
- Eu não quero ir sem falar com ele… – lamentou-se Ana.
- Ele viu-a Señora. – E tinha razão quando disse que a Senõra era linda como uma rosa…mas muito frágil para estar aqui.
Ana procurou Danilo com os olhos, viu-o chegar. Também ele parecia magoado.
- Vão-se embora continuou a voz – Têm muito que caminhar ainda, não os podemos levar até mais longe…era perigoso para vós.
Sigam o trilho do rio, de certo que encontrarão o caminho. O rio nunca mente.
E Ana e Danilo viram-se outra vez a caminho da civilização, lado a lado, par a par.
Como iriam sair daquele lugar, com chegaria Ana a casa a tempo de ver o que se passava? Ana estava desesperada, e o curso da água era traiçoeiro, pensava.
- Temos que ir já para casa. Disse Ana a Danilo. – Tive um sonho terrível…terrorífico mesmo! Preciso de ver a minha filha!
- Ana disse Danilo – calmamente, tentando não preocupar a amiga – Ana, as estradas estão cortadas, é impossível sairmos daqui!
E Ana quase caiu novamente. Agarrou-se mesmo ao amigo para permanecer em pé. E a partir daquele minuto para Ana, só a escuridão contava, como se tivesse mergulhado de novo na noite imensa que não se pode ver, mas que a consumia por dentro, que lhe roubava o ar.

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Sobre San Caetano, também a noite se abatia, feroz, na Casa Lúmina.
As suas portas fechavam-se, num silêncio sepulcral, marmóreo, levando toda a sua luz e risos de outrora. O lindo átrio da casa cobria-se agora de limo e folhas, o musgo vestia a fonte do Cupido, a água deixara de jorrar, o Cupido fechava o seu sorriso num sono profundo.
Em La Esperanza, a casa do Governador era agora refúgio de fugitivos. O gigante grande e imponente, que guardara toda a cidade, que a vigiara, jazia agora de portas escancaradas, para quem o quisesse ver.


As Montanhas de Sauzesco

Tuesday, March 08, 2005

Nas Montanhas

“ Diga-lhe que dois homens nascerão, na mesma cidade, no mesmo sítio, mas que não conseguirão viver no mesmo tempo. Enquanto um não tiver consciência do espaço do outro não poderão viver em paz. Lembre-se que a marca é o símbolo de união entre todos. Não há um todo que viva sem as partes…lembre-se. E Ana tremeu ao lembrar-se da marca. Soube, então que tinha que fazer o sacrifício, abdicar da sua vida para salvar as do todo. Decidiu que abdicaria dela, porque a sua vida seria insignificante se vivesse só para si.
E torturava-se sozinha por compreender, por saber…sem saber como falar. Há muito que Ana sabia ser aquele o seu destino, e mesmo assim, sempre que este vinha ter consigo, não havia forma de deixar de o encarar como uma novidade.”

A carruagem parou perto de San Caetano e Ana tremeu ao lembrar-se daquela cidade onde tinha vivido longos anos de felicidade. Ali se casara, ali amadurecera e se mostrara como era. Parte das suas raízes tinham ficado ali também. Sentia falta dos tempos em que se podia andar livremente por entre as casas sem ter que recear violências. Sentia falta dos tempos em que sabia que podia contar com todos, com os amigos, os vizinhos, os criados. Nessa altura todos eram amigos e fiéis. Agora, todas as máscaras derrubadas e partidos tomados, era melhor esquecer quem tinha sido nosso amigo e prosseguirmos com os companheiros de jornada.
Danilo olhou para a amiga que conhecia como as palmas de suas mãos e achou melhor não lhe perguntar o que se passava. Era melhor ser Ana a sair daqueles pensamentos que a rodeavam.
- As montanhas ficam a poucos km daqui, amiga. Não sei se quer parar e descansar.
- É melhor continuarmos… – disse-lhe Ana resoluta.
E Danilo não percebia, esperava ver o sorriso no rosto da amiga, a ternura que a caracterizava tinha desaparecido, como se uma sombra tivesse descido sobre ela e a tomasse completa, mesmo assim andava, lado a lado com aquele resquício desconhecido para ele. E se a noite tinha baixado sobre Ana e a tinha feito mergulhar nas trevas, não haveria melhor sítio para ele estar também. E muitas noites mais se atravessariam entre eles. Ali, pensou, as trevas eram o paraíso.
E Ana continuava absorta, levada pelo tempo, pelas horas, meditava sozinha, em silêncio, como se a dor que a invadira fosse maior que tudo.
E o tempo passava, embora sozinho, sem falar também, Danilo sentia que olhando para Ana estava mais completo, mais ele…e como se sentia feliz, não podia deixar de sentir um contentamento egoísta ao ver a amiga ali, sozinha, sem Miguel. E mesmo que os remorsos o invadissem num laivo de lucidez, não deixava de esboçar um sorriso e de respirar fundo, recostando-se melhor no acento da carruagem.
A noite caiu rápido em Sauzesco. Ana dormia.
- Chegamos – disse-lhe Danilo tocando-lhe ao de leve na mão. E Ana estremeceu.
E quase como que adivinhando todos os pensamentos do amigo, Ana passou – lhe a mão pela face, lançado – lhe um sorriso terno, doce, melancólico.
E como estava grato por aquele sorriso, pensava Danilo.
Saíram os dois da carruagem, no negro da noite, na esperança de encontrarem Miguel.
Começaram a subir as íngremes encostas da montanha, apenas com uma lanterna, e com o sentido apurado de Ana. Tinham andado cerca de meia hora, não sabiam por onde iam, as silvas e as pedras cortavam-lhes as roupas, faziam-nas farrapos, Danilo pensara em desistir, em vir para trás, mas ao olhar para a amiga recordava-se que mais importante do que ter a roupa em farrapos, era ter a alma despedaçada pela ausência, enquanto Ana caminhasse, ele também andaria.
E foi nessa altura que ambos viram.viraram-se instantaneamente um para o outro e Ana sentiu o coração estremecer.


Danilo, o amigo de todos os tempos

Thursday, December 23, 2004

A Viagem

“Olá, entra Meu Anjo…” – Dizia a voz feminina num tom amigável.
Aqui serás sempre bem vinda, serás sempre tratada com o carinho que damos a nosso filho. Ele será teu companheiro de aventuras, façam-se amigos e tudo correrá pelo melhor…agora vai mudar as roupas, estás encharcada, meu lindo pintainho…” Continuou a mulher a dizer enquanto acarinhava uma menina trémula acabada de chegar a um mundo novo, diferente da sua toca esconderijo. A menina era pequena e franzina, uns olhos castanhos, duas avelãs enormes, sorriam palidamente, como dois sois, o cabelo encaracolado, escondido por uma touca escarlate, parecia trazer para dentro da casa a própria chuva a escorrer dentro de portas. A menina tremia de frio e de nervos habituais de quem pisa a primeira vez um palco que ainda não sente como seu.
E parecia absorver tudo, a imagem de Dona Mena e Dom Álvaro a caminharem para ela, o carinho com que a tratavam tudo estava a entranhar-se nela, como carne de nossa carne que não se pode esquecer ou excluir. Ana Branco acabava de chegar ao seu trono”.

Ana sentia-se em casa na cidade de Mangualde. No fundo, aquela era a família que tinha. Dos pais nada sabia desde há muito tempo, e não tinha mais ninguém com quem desabafar que não fosse aquelas pessoas que faziam agora parte do seu quotidiano.
La Esperanza tinha uma nova cor desde que Ana e Maria lá haviam chegado.
Foi nessa altura que Ana sentiu que algo de novo se passava com ela.
Algo em si a modificava dia após dia. Foi também nessa altura que Ana teve a maior surpresa da sua vida. Ali, em Mangualde, aparecia o seu grande amigo, Danilo.
Danilo era um homem robusto, forte, um verdadeiro lorde filho de pais abastados, a família mais rica da sua região, que sempre fora amigo de Ana. Os pais de Ana haviam tido grandes desavenças ao longo da vida e foi quando Ana fazia os seus cinco anos que o golpe mais duro da sua vida aconteceu: a mãe morrera tísica, deixando com ela mais três filhos aos quais o pai de Ana não sabia o que fazer. Os pais de Danilo (amigos do Governador) aceitaram Ana em sua casa tal como os outros irmãos foram aceites noutros lares (os quais ela nunca via a não ser nas épocas festivas). Ana tinha pelos pais de Danilo um enorme apreço e carinho. Sabia que sem eles não teria sobrevivido. Danilo era aquele amigo presente, a mão que consola, o espírito do irmão que Ana nunca tivera.
Mesmo enquanto crianças sempre foram grandes companheiros e Danilo nunca tivera ciúmes de Ana como seria de esperar. Ana sempre acreditou que se casaria com Danilo, e chegou mesmo a pensar em fugir só para não ter que se casar com Miguel. Contudo, Ana acabou por deixar a sua cidade de origem indo em busca de uma nova vida. Atormentado pela verdade que lhe caíra, repentina, do céu Danilo partira também para longe. Também ele buscava um novo rumo para si. E a vida dera mesmo muitas voltas. Ana estava agora casada com Miguel (o homem que muito amava, sem saber como ou porquê) e Danilo estava agora em Mangualde, como se mais uma vez soubesse que a velha amiga ainda precisava dele.
“Danilo…que faz aqui?”-Indagou Ana enquanto abraçava o amigo.
“ Soube que o seu marido se mudou lá para as montanhas” – Respondeu-lhe Danilo em tom irónico. “ Acho que precisa de mim como sempre precisou, querida Ana.”
E Ana explicou-lhe tudo o que se passava no seu coração. Contou-lhe como tinha sido recebida por Miguel, relatou-lhe ponto por ponto toda a vida que levava naquele país. Falou-lhe de tudo o que viviam, de como Miguel lhe tinha dito que ia lutar pelas suas convicções, de como sentia que ainda tinham muito para sofrer. Emocionou-se ao falar-lhe da filhinha, ao descrever-lhe a casa em San Caetano. Como a vida era diferente de onde vinha, pensava Danilo. Como era diferente a vida na Europa, ainda bem que tinha emigrado para lá.
Depois de lhe contar o seu maior segredo, Ana levantou-se e dirigiu-se à porta pronta para sair.
-“ Então é por isso que o quer procurar, não é?”- Indagou Danilo.
-“ Sim…e não só. Sinto que ainda tenho muito para resolver com ele. Agora ainda mais...é preciso avisá-lo.” – Respondeu Ana em tom seguro.
Pouco depois, prostrada sobre a cama da sogra, Ana sentiu que não havia mesmo mais nada a fazer. Tinha que procurar Miguel.
Foi quando Maria Lúcia faleceu que Ana tomou a atitude final. Falando com o barão, despedindo-se da filha, deixou ciente que teria que ser ela a procurar Miguel. Ninguém poderia fazê-lo por ela. Mas foi com verdadeira dor que Ana teve que enfrentar o choro aberto de Maria da Luz e até o olhar desolado de Clarisse.
- Voltarei para ti, mais cedo do que pensas, é só fechares os olhos e veres como o tempo passa mais rápido…é só imaginar…” Dizia Ana à filha para a consolar.
Embora lhe custasse muito fazê-lo como poderia Ana deixar de procurar o marido, como poderia ela deixar ficar nas suas mãos o destino de tanta gente? De tantos que, como ela, acreditavam num tempo melhor?
Sem olhar para trás, Ana tentou esquecer-se de como falar, de como ouvir e saiu ligeira com o amparo de Danilo.
E com as lágrimas nos olhos, iniciou aquela que seria a sua viagem, a viagem para dentro de si mesma, de auto-conhecimento; mas também a viagem de todos, de futuro e de esperança.
Esta era também uma viagem que Ana não sabia como ia acabar



Ana e Danilo, a grande infãncia



Maria da Luz

Monday, December 20, 2004

La Esperanza

Ana recordava – se vivamente da sua noite de núpcias. Sentia ainda o nervosismo percorrer-lhe a pele, guardava em si cada expressão, cada palavra dita naquela noite. Emocionava-se ainda com o carinho que Miguel demonstrara por ela.
“ Só serás minha quando quiseres, eu espero…não pretendo tomar ninguém pela força…e acho que era bom conhecermo-nos melhor primeiro…”- disse-lhe Miguel passando-lhe levemente a mão pela face.
Ana sorriu e esperou que Miguel continuasse a falar. Não era mulher de grandes comentários, estava num mundo que não conhecia, numa cidade que não era a sua, à espera de amar um homem que era agora o seu marido.
Ana olhou para os seus olhos e viu quem era Miguel. Viu nele todos os receios, todas as angústias que também ela sentia e não pode deixar de sorrir. Afinal, não era só ela a temer pelos dois, a sentir-se insegura em terreno ainda por desbravar.
“Chegará o momento em que ambos nos vamos esquecer de esperar…” anuiu Ana.
E Miguel devolveu-lhe o sorriso mais terno que Ana alguma vez vira, e de repente, era como se o mundo não existisse, como se só aquele sorriso contasse. Ana retirou-se devagar, dirigindo-se para o quarto de hóspedes com a certeza de que não lhe ia custar nada esperar.

Enquanto percorria o país de carruagem Ana pensava o que iria fazer quando chegasse a Mangualde. Não conhecia nada daquela terra e pouco relacionamento tivera com Joaquim ou com o Governador. Começava a sentir que Miguel realmente lhe fazia falta e não sabia como superá-la. Enquanto via os cavalos galgarem as léguas que a separavam da terra misteriosa, Ana sentia-se perdida. Olhava para o céu onde despontavam os primeiros raios de sol, via as nuvens lá no alto e acreditava que tudo aquilo tinha que ter um propósito. A maldade entre os homens era tanta que se tornava difícil perceber quem tinha razão no meio de tantas razões encobertas.
Enquanto rumava para o seu novo destino Ana sabia que aquela guerra estava longe de ter um fim. Conseguia antever as mortes, o sofrimento, a violência que se perpetuaria na história daquele país.
Tinham chegado a Mangualde quando foi acordada deste seu pensamento e olhou em volta. Na praça mulheres vendiam frutas e legumes em carrinhos de mão. A música dos afiadores de facas ecoava nos ouvidos. Ali perto, o clube latino, sempre em estilo francês de onde saiam homens com charutos e chapéus de coco na cabeça, engravatados e com ar apressado. No cimo da colina uma mansão imponente figurava, no alto, como um gigante de pedra vigilante do reino das almas.
Á medida que se aproximavam Ana sentia a expectativa dos primeiros momentos, sentia um gelo percorrer-lhe todo o corpo. Engolindo a dor que nela se tinha instalado, levantou-se saindo ligeira da carruagem. Com ela seguiram a filha e a fiel aia, Clarisse. Joaquim, amo de Miguel e companheiro das horas mortas do Governador guiava-as pelos caminhos da mansão.
- Aqui estarão em segurança. Não há quem se atreva a tomá-la. - Assegurou Joaquim em tom reconfortante. – Também já não há muita gente por estas bandas. A maior parte fugiu para as montanhas ou encontra-se fechada, como nós. Completou, fazendo vivos gestos com a cabeça para os lados, tentando ler as reacções.
Ana olhou ao seu redor. Joaquim tinha razão. A cidade estava praticamente deserta. Dali do cimo da colina, conseguia ver tudo muito melhor. Via a praça com os vendedores, via as casinhas minúsculas, no planalto e o fumo que saía das chaminés.
Joaquim abriu-lhes a porta da mansão. Lá dentro a ténue luz da manhã iluminava palidamente a casa. Ana entrou para um hall onde se manteve por breves minutos, sendo interrompida por uma voz, remotamente familiar.
- Entrem… isto aqui está uma confusão. – Dizia o governador Alexandre Albuquerque
- São tempos difíceis… - disse Ana olhando para a filha. – Maria! Venha dar um beijo ao avô.
- Então esta é que é Maria da Luz… - disse Alexandre enternecido levantando-se do seu cadeirão e dirigindo a mão à cabeça da neta, acariciando-lhe os cabelos ruivos.
- Sim, e hoje está um pouco encabulada, é a primeira que vê vossa senhoria… – completou Ana puxando a filha para si. E esta é Clarisse, nobre aia de minha filha, sua neta.
Quando os olhos do barão se deitaram naquela figura, Alexandre de Almeida e Albuquerque, barão de Mangualde, governador, sentiu-se de novo como uma criança indefesa. O seu corpo tremeu e Alexandre desejou nunca ter vivido aquele momento.
-Bem…- Disse em jeito de conclusão – de certo que a aia e a menina não se importam de se recolherem aos seus aposentos. Há uma conversa que desejo ter consigo, Ana.
Ana anuiu pedindo a Clarisse que levasse Maria para o quarto que Joaquim lhes providenciara.
- A razão porque a chamei para aqui, não se prende só com o facto de segurança. - Confidenciou Joaquim – Decerto que foi um dos motivos, mas outra razão me impeliu a fazê-lo…minha esposa Lúcia encontra-se muito debilitada. Há muito que a fraqueza a atacou. – Lamentou-se Joaquim.
- Faremos tudo o que podermos para lhe dar a felicidade de que necessita. – Atalhou Ana, sempre perspicaz.
- Estou convencido que sim. – Disse Alexandre, disfarçando subtilmente mal sentiu a presença de Maria Lúcia.
Ana olhou para a sogra e uma sensação de pânico invadiu-a. Como estava pálida e fraca. A sua magreza impressionava. Parecia um esqueleto em pé. Uma sombra humana, tentando sentir-se viva.
- Ana, já vi a menina…é um amor de riqueza… – disse Lúcia com um sorriso nos lábios. Parece-se muito com Miguel… – concluiu
- Sem duvida que se parece muito com o pai. – Disse Ana, abraçando a sogra emocionada.
E foi assim que Ana sentiu que não podia estar noutro sítio, não podia fazer as coisas de outra maneira. Enquanto Maria Lúcia precisasse Ana estaria por perto para ajudá-la. Enquanto lhe pudesse dar um pouco de conforto, estaria ali para a amparar. Sentia, por fim, que estava mesmo no lugar certo e que não havia, verdadeiramente decisões erradas, apenas escolhas fruto de ocasiões. E aquela era a sua escolha do momento. Ali, na mansão La Esperanza, a felicidade iria reinar de novo.




Ana Branco

Thursday, December 16, 2004

Capitulo II- I parte

Capitulo II

Na Casa Lúmina, em San Caetano, no átrio, Ana espera a chegada de Miguel. Os dois haviam ocupado a casa desde que o governador e a mulher voltaram para Mangualde.
Ana via a filha brincar com a aia Clarisse e sentia-se diminuir. O coração apertava-se com a expectativa.
Respirou fundo, engoliu em seco. Afonso de Marco há muito que a olhava nos olhos de forma curiosa. Como se soubesse que Miguel a ia trair.
Mas ela sabia que não. Nã0 havia traição. Aquele homem nunca a iria trair. “ Nunca no futuro poderás dizer que te traí. Se o fizeres, serás tu quem me estará a trair.”
Ana sabia que o
marido não a ia deixar ficar mal. O ambiente andava tenso, o povo já não se comportava da mesma maneira. As montanhas enchiam-se de guerrilheiros, filhos de pais perseguidos. Ana via que o olhar de Miguel há muito se modificava, estava cada vez mais misterioso. Já não tinha o olhar doce de um eterno rapaz mas um olhar resoluto de um homem determinado, como se soubesse que aquela luta também era dele. Após a Hacienda da Luz ter sido tomada pelos guerrilheiros, Miguel entrara num choque profundo, durante dois dias não comera e quando ao raiar do terceiro dia Ana se levantou, o marido já não estava lá para recebê-la. Tinha desaparecido pela madrugada, tinha viajado para as montanhas e juntara-se às lutas que considerava justas.
Ana lembrara-se então de um episódio que ocorrera havia alguns meses. A mulher de um trabalhador da fazenda estava doente, com altas febres, entrava em delírios. Rezava no seu pobre quarto da casa dos criados situada a uns metros da mansão, preces imperceptíveis. Gritava que tinha visto um homem nas montanhas, um homem que, à medida que comandava, os outros se ajoelhavam perante a sua figura imponente.
Ana lembrava-se que quando o esposo soubera disso, se rira bastante e se disporá a ouvir a mulher.
Desceu o alpendre acompanhado de um criado e foi até à casa destes. Quando regressou vinha diferente. Olhou para Ana e não falou. Nessa noite, não conseguiu dormir. No dia seguinte, Ana soube que, ao entrar no quarto dos criados, a mulher serenou imediatamente. Levantou-se sonâmbula e dirigiu-se para Miguel, apontando o dedo pálido, dizendo com voz fraca: é ele!
Em seguida, caiu desamparada para trás, entrando num sono profundo. Quando acordou, de nada se lembrava.
Outras coisas passaram rápidas na alma de Ana. Mas apenas o desejo de ver o marido chegar, pegar na filha ao colo e entrar em casa abraçando-a faziam-na estar ansiosa.
Sentada ali no alpendre que tantas recordações lhe trazia Ana começava a desesperar. O sol punha-se no horizonte e as folhas de Outono, vivas, voavam em círculos perto da grande fonte do Cupido. A seta parecia apontar a qualquer coração que entrasse naquela casa, recheando-o de paz e serenidade. Para Ana aquela seta parecia acertar-lhe directamente no coração agora negro de agonia, dilacerando-o. Tudo lhe trazia a imagem que Ana há muito esperava; sabia o que fazer mas não estava certa se o conseguia fazer.
O frio aumentava lá fora e Clarisse precipitou-se para a porta de entrada com a menina nos braços. Ana olhou para a filha e sentiu-se frágil. Viu quão fraca a humanidade era, sentiu o peso dos ódios, dos medos, das traições e via como tudo isto era em vão se nada fosse feito para melhorar os dias.
Ana viu Joaquim aproximar-se dela e sentiu um frio no estômago.
- Senhora, preciso falar-lhe. – Disse Joaquim.
- Sei porque vens, Joaquim. Há muito que sentia que este momento estava próximo, o meu coração sente dor, mas resigna-se.
- Partiremos quando for madrugada, nessa altura os guerrilheiros regressarão às montanhas. – Confessou Joaquim.
Nessa noite Ana rodeava, agitada, o quarto da filha. Quando Clarisse apareceu viu a Senhora a chorar, prostrada aos pés da caminha da menina.
- Prepare-a o mais depressa possível, devemos sair antes que o sol nasça.
- O que se passa Senhora? Porque não regressa o senhor Miguel a casa? – Perguntou a nobre aias, aflita.
- Porque é dever dele não voltar. Tal como é meu dever sair daqui. Esta casa já não me pertence, fiel Clarisse.
- Ainda é muito cedo, porque devo acordar a menina?
- Faça o que lhe peço, Clarisse, por favor. – Disse Ana, quase a implorar. – Não me pergunte nada porque não lhe saberia responder. – Continuou com as lágrimas nos olhos. Pouco depois, Clarisse aparecia-lhe com a menina dormente no colo.
- Senhora, não sei como perguntar isto, mas…
- Se quiser pode ir connosco, Clarisse. A decisão é sua. – Disse Ana num tom doce. – se quiseres juntar-te aos teus, compreenderei, são parte de ti.
- Não saberia como deixar esta família, sirvo-a há muitos anos, ela sim é parte de mim. – Desabafou a aia.
Saíram, então, todos juntos para a nova vida, um novo mundo, um momento novo para a vida daquela família e daquela gente.
Enquanto ouviam Ana proferir as palavras que os libertavam, que os deixavam ir para as suas casas, os criados sorriam plenamente. Ana sabia que estava a fazer o que era certo. Todos mereciam viver como entendessem.

Tuesday, June 01, 2004

capitulo1 continuação 6

«Miguel via-a aproximar-se angustiado. Será feia, será bonita? Simpática?
As dúvidas percorriam-lhe o pensamento. Rápidas e perigosas.
Da noiva, sabia que se chamava Ana, mais nada.
A noiva retirou o véu. Miguel, ansioso, olhou para ela.»

E surpreendeu-se com a face da rapariga. Ela olhou para ele. Sorria-lhe. Os olhos dela, castanhos, percorriam-lhe as ideias. O cabelo preto, os caracóis...tudo ficava bem naquele rosto de menina com sardas.
Ana também para ele olhava. Sorria de novo. Era a união crescente entre os dois, nunca haviam falado antes…
E quando o padre perguntou a Miguel se aceitava Ana como esposa a resposta automática saiu: Sim!
Ana também ao noivo dizia que sim. Sua face carregava-se de um leve vermelho, misto de excitação pelo casamento. Além disso, sentia que algo de certo estava a acontecer. Perante o padre e Miguel, o homem com quem estava a firmar o futuro, lembrou-se de um amigo de infância. Um amigo que sempre a escutara e ao qual julgara que destinada estava. Porém, acreditara sempre numa espécie de voz interior que lhe dizia que esse amigo não era o Homem a quem ela estava destinada a dar filhos. Olhou para Miguel e sentiu uma espécie de alegria interior. A sua face… parecia que em sonhos a já tinha visto.
O momento do beijo chegara. O Padre dizia as últimas preces. Tirou o véu. Olhou para Miguel e notou um grande brilho no seu olhar. Teve nesse momento a certeza que aquele casamento não era um engano. O noivo, recém-conhecido, amava-a também. As bocas aproximaram-se, e a consumação dos dois lábios num beijo de ternura selou o «abençoado» destino de Miguel e Ana.
Saíram do altar já marido e mulher. As pessoas levantavam-se, à medida que os noivos passavam pela nave da Igreja. Miguel olhava para os pais. Via o Barão sorrir e a mãe chorar comovida. Ana sorria, mas os seus olhos vagueavam pelos presentes. Só agora reparava neles, visto a sua cega ânsia de conhecer Miguel quando se dirigia para o altar. Procurava o amigo. Não o via e seus olhos desiludiam-se à medida que chegava à porta da Igreja. Pensou então onde ele estaria. Desde a noite em que lhe revelara o noivado encomendado que sabia que ele sofria. Lembrou-se das suas palavras desesperadas:
- Não sei se o passo certo estás a dar. Sei que pensarei em ti para sempre.


Casamento de Miguel e Ana