Thursday, December 16, 2004

Capitulo II- I parte

Capitulo II

Na Casa Lúmina, em San Caetano, no átrio, Ana espera a chegada de Miguel. Os dois haviam ocupado a casa desde que o governador e a mulher voltaram para Mangualde.
Ana via a filha brincar com a aia Clarisse e sentia-se diminuir. O coração apertava-se com a expectativa.
Respirou fundo, engoliu em seco. Afonso de Marco há muito que a olhava nos olhos de forma curiosa. Como se soubesse que Miguel a ia trair.
Mas ela sabia que não. Nã0 havia traição. Aquele homem nunca a iria trair. “ Nunca no futuro poderás dizer que te traí. Se o fizeres, serás tu quem me estará a trair.”
Ana sabia que o
marido não a ia deixar ficar mal. O ambiente andava tenso, o povo já não se comportava da mesma maneira. As montanhas enchiam-se de guerrilheiros, filhos de pais perseguidos. Ana via que o olhar de Miguel há muito se modificava, estava cada vez mais misterioso. Já não tinha o olhar doce de um eterno rapaz mas um olhar resoluto de um homem determinado, como se soubesse que aquela luta também era dele. Após a Hacienda da Luz ter sido tomada pelos guerrilheiros, Miguel entrara num choque profundo, durante dois dias não comera e quando ao raiar do terceiro dia Ana se levantou, o marido já não estava lá para recebê-la. Tinha desaparecido pela madrugada, tinha viajado para as montanhas e juntara-se às lutas que considerava justas.
Ana lembrara-se então de um episódio que ocorrera havia alguns meses. A mulher de um trabalhador da fazenda estava doente, com altas febres, entrava em delírios. Rezava no seu pobre quarto da casa dos criados situada a uns metros da mansão, preces imperceptíveis. Gritava que tinha visto um homem nas montanhas, um homem que, à medida que comandava, os outros se ajoelhavam perante a sua figura imponente.
Ana lembrava-se que quando o esposo soubera disso, se rira bastante e se disporá a ouvir a mulher.
Desceu o alpendre acompanhado de um criado e foi até à casa destes. Quando regressou vinha diferente. Olhou para Ana e não falou. Nessa noite, não conseguiu dormir. No dia seguinte, Ana soube que, ao entrar no quarto dos criados, a mulher serenou imediatamente. Levantou-se sonâmbula e dirigiu-se para Miguel, apontando o dedo pálido, dizendo com voz fraca: é ele!
Em seguida, caiu desamparada para trás, entrando num sono profundo. Quando acordou, de nada se lembrava.
Outras coisas passaram rápidas na alma de Ana. Mas apenas o desejo de ver o marido chegar, pegar na filha ao colo e entrar em casa abraçando-a faziam-na estar ansiosa.
Sentada ali no alpendre que tantas recordações lhe trazia Ana começava a desesperar. O sol punha-se no horizonte e as folhas de Outono, vivas, voavam em círculos perto da grande fonte do Cupido. A seta parecia apontar a qualquer coração que entrasse naquela casa, recheando-o de paz e serenidade. Para Ana aquela seta parecia acertar-lhe directamente no coração agora negro de agonia, dilacerando-o. Tudo lhe trazia a imagem que Ana há muito esperava; sabia o que fazer mas não estava certa se o conseguia fazer.
O frio aumentava lá fora e Clarisse precipitou-se para a porta de entrada com a menina nos braços. Ana olhou para a filha e sentiu-se frágil. Viu quão fraca a humanidade era, sentiu o peso dos ódios, dos medos, das traições e via como tudo isto era em vão se nada fosse feito para melhorar os dias.
Ana viu Joaquim aproximar-se dela e sentiu um frio no estômago.
- Senhora, preciso falar-lhe. – Disse Joaquim.
- Sei porque vens, Joaquim. Há muito que sentia que este momento estava próximo, o meu coração sente dor, mas resigna-se.
- Partiremos quando for madrugada, nessa altura os guerrilheiros regressarão às montanhas. – Confessou Joaquim.
Nessa noite Ana rodeava, agitada, o quarto da filha. Quando Clarisse apareceu viu a Senhora a chorar, prostrada aos pés da caminha da menina.
- Prepare-a o mais depressa possível, devemos sair antes que o sol nasça.
- O que se passa Senhora? Porque não regressa o senhor Miguel a casa? – Perguntou a nobre aias, aflita.
- Porque é dever dele não voltar. Tal como é meu dever sair daqui. Esta casa já não me pertence, fiel Clarisse.
- Ainda é muito cedo, porque devo acordar a menina?
- Faça o que lhe peço, Clarisse, por favor. – Disse Ana, quase a implorar. – Não me pergunte nada porque não lhe saberia responder. – Continuou com as lágrimas nos olhos. Pouco depois, Clarisse aparecia-lhe com a menina dormente no colo.
- Senhora, não sei como perguntar isto, mas…
- Se quiser pode ir connosco, Clarisse. A decisão é sua. – Disse Ana num tom doce. – se quiseres juntar-te aos teus, compreenderei, são parte de ti.
- Não saberia como deixar esta família, sirvo-a há muitos anos, ela sim é parte de mim. – Desabafou a aia.
Saíram, então, todos juntos para a nova vida, um novo mundo, um momento novo para a vida daquela família e daquela gente.
Enquanto ouviam Ana proferir as palavras que os libertavam, que os deixavam ir para as suas casas, os criados sorriam plenamente. Ana sabia que estava a fazer o que era certo. Todos mereciam viver como entendessem.

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