Thursday, December 23, 2004

A Viagem

“Olá, entra Meu Anjo…” – Dizia a voz feminina num tom amigável.
Aqui serás sempre bem vinda, serás sempre tratada com o carinho que damos a nosso filho. Ele será teu companheiro de aventuras, façam-se amigos e tudo correrá pelo melhor…agora vai mudar as roupas, estás encharcada, meu lindo pintainho…” Continuou a mulher a dizer enquanto acarinhava uma menina trémula acabada de chegar a um mundo novo, diferente da sua toca esconderijo. A menina era pequena e franzina, uns olhos castanhos, duas avelãs enormes, sorriam palidamente, como dois sois, o cabelo encaracolado, escondido por uma touca escarlate, parecia trazer para dentro da casa a própria chuva a escorrer dentro de portas. A menina tremia de frio e de nervos habituais de quem pisa a primeira vez um palco que ainda não sente como seu.
E parecia absorver tudo, a imagem de Dona Mena e Dom Álvaro a caminharem para ela, o carinho com que a tratavam tudo estava a entranhar-se nela, como carne de nossa carne que não se pode esquecer ou excluir. Ana Branco acabava de chegar ao seu trono”.

Ana sentia-se em casa na cidade de Mangualde. No fundo, aquela era a família que tinha. Dos pais nada sabia desde há muito tempo, e não tinha mais ninguém com quem desabafar que não fosse aquelas pessoas que faziam agora parte do seu quotidiano.
La Esperanza tinha uma nova cor desde que Ana e Maria lá haviam chegado.
Foi nessa altura que Ana sentiu que algo de novo se passava com ela.
Algo em si a modificava dia após dia. Foi também nessa altura que Ana teve a maior surpresa da sua vida. Ali, em Mangualde, aparecia o seu grande amigo, Danilo.
Danilo era um homem robusto, forte, um verdadeiro lorde filho de pais abastados, a família mais rica da sua região, que sempre fora amigo de Ana. Os pais de Ana haviam tido grandes desavenças ao longo da vida e foi quando Ana fazia os seus cinco anos que o golpe mais duro da sua vida aconteceu: a mãe morrera tísica, deixando com ela mais três filhos aos quais o pai de Ana não sabia o que fazer. Os pais de Danilo (amigos do Governador) aceitaram Ana em sua casa tal como os outros irmãos foram aceites noutros lares (os quais ela nunca via a não ser nas épocas festivas). Ana tinha pelos pais de Danilo um enorme apreço e carinho. Sabia que sem eles não teria sobrevivido. Danilo era aquele amigo presente, a mão que consola, o espírito do irmão que Ana nunca tivera.
Mesmo enquanto crianças sempre foram grandes companheiros e Danilo nunca tivera ciúmes de Ana como seria de esperar. Ana sempre acreditou que se casaria com Danilo, e chegou mesmo a pensar em fugir só para não ter que se casar com Miguel. Contudo, Ana acabou por deixar a sua cidade de origem indo em busca de uma nova vida. Atormentado pela verdade que lhe caíra, repentina, do céu Danilo partira também para longe. Também ele buscava um novo rumo para si. E a vida dera mesmo muitas voltas. Ana estava agora casada com Miguel (o homem que muito amava, sem saber como ou porquê) e Danilo estava agora em Mangualde, como se mais uma vez soubesse que a velha amiga ainda precisava dele.
“Danilo…que faz aqui?”-Indagou Ana enquanto abraçava o amigo.
“ Soube que o seu marido se mudou lá para as montanhas” – Respondeu-lhe Danilo em tom irónico. “ Acho que precisa de mim como sempre precisou, querida Ana.”
E Ana explicou-lhe tudo o que se passava no seu coração. Contou-lhe como tinha sido recebida por Miguel, relatou-lhe ponto por ponto toda a vida que levava naquele país. Falou-lhe de tudo o que viviam, de como Miguel lhe tinha dito que ia lutar pelas suas convicções, de como sentia que ainda tinham muito para sofrer. Emocionou-se ao falar-lhe da filhinha, ao descrever-lhe a casa em San Caetano. Como a vida era diferente de onde vinha, pensava Danilo. Como era diferente a vida na Europa, ainda bem que tinha emigrado para lá.
Depois de lhe contar o seu maior segredo, Ana levantou-se e dirigiu-se à porta pronta para sair.
-“ Então é por isso que o quer procurar, não é?”- Indagou Danilo.
-“ Sim…e não só. Sinto que ainda tenho muito para resolver com ele. Agora ainda mais...é preciso avisá-lo.” – Respondeu Ana em tom seguro.
Pouco depois, prostrada sobre a cama da sogra, Ana sentiu que não havia mesmo mais nada a fazer. Tinha que procurar Miguel.
Foi quando Maria Lúcia faleceu que Ana tomou a atitude final. Falando com o barão, despedindo-se da filha, deixou ciente que teria que ser ela a procurar Miguel. Ninguém poderia fazê-lo por ela. Mas foi com verdadeira dor que Ana teve que enfrentar o choro aberto de Maria da Luz e até o olhar desolado de Clarisse.
- Voltarei para ti, mais cedo do que pensas, é só fechares os olhos e veres como o tempo passa mais rápido…é só imaginar…” Dizia Ana à filha para a consolar.
Embora lhe custasse muito fazê-lo como poderia Ana deixar de procurar o marido, como poderia ela deixar ficar nas suas mãos o destino de tanta gente? De tantos que, como ela, acreditavam num tempo melhor?
Sem olhar para trás, Ana tentou esquecer-se de como falar, de como ouvir e saiu ligeira com o amparo de Danilo.
E com as lágrimas nos olhos, iniciou aquela que seria a sua viagem, a viagem para dentro de si mesma, de auto-conhecimento; mas também a viagem de todos, de futuro e de esperança.
Esta era também uma viagem que Ana não sabia como ia acabar



Ana e Danilo, a grande infãncia



Maria da Luz

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